vó júlia | o avô chico - II

a vó júlia vivia com o seu homem. servia-o fielmente. cultivava uma pequena lavra só sua que era o seu sustento. vendia os seus produtos na loja do seu homem que lhe pagava menos que à população rural sua clientela.
apesar da sua condição de actual esposa, não habitava a casa "senhorial", vivia no quintal. toda a roça, todos aqueles bens, incluindo ela própria eram pertença dele.
ela gerava os filhos, punha-os no mundo, mas não tinha o direito de os criar. iam para a casa grande para serem criados pela velha augusta sob a tutela do tio luís.
eram apartados dela muito cedo. o seu homem não gostava de ser perturbado pelos negrinhos e elea tinha que estar disponível para ele. a sua caçula nasceu na capoeira do quintal. chovia torrencialmente, as dores eram cada vez mais fortes mas nem implorando obteve autorização para entrar em casa.
contam que numa altura em que o seu corpo alimentava um novo ser que ía crescendo mesmo com o trabalho árduo na lavra, os maus tratos, aguentou tudo, até ao suor, ao grito, ao rasgar do corpo, ao sangue, ao parto.
desta vez a criança não aguentou a agarrar-se à vida. foi de mãos vazias a boca gritando a dor da alma que recebeu do seu homem a resposta seca, - não faz mal, faz-se outro!
os filhos cresceram, fizeram-se homens. tinham feito a primária completa orgulho do tio luís. esse branco que a morte levou cedo.
cresceram com respeito, amor, até admiração pelo pai branco que nesta altura já visitava os filhos e acarinhava os netos amaciado pela velha e sábia mãe-áfrica. assumia já o seu papel. então punha-me ao colo e cantarolava para mim, - xina papa roz!!!... fazia cavalinho e chamava-me lêndea fina, a pequenina caçulinha da altura.
amei o avô chico a versão do meu pai. era o meu avô, que nasceu na serra da estrela, em seia, onde há neve. que entrou na guerra de 14 a 18, e lá estava a fotografia a comprovar., numa pose elegante com a farda bem arrumada e a braçadeira com a cruz vermelha.
era o meu imaginário sobre a neve, o frio, o branco, o poder, na grande guerra, o ser bem sucedido, o ser evoluído, os brancos, o país dos brancos, a metrópole, o que me era dado a conhcer, o modelo por que me tinha que pautar para "ser alguém".

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