chegam cheiros distantes desde os finais dos setenta - a terra em forma de fruto

Não abras os maboques sem mim!
Do outro lado, na firmeza de quase ordem de mais velha assim me dizias
E eu do lado de cá a saborear o odor que passeava por todos os recantos da sala, ria, zombeteira, a aproveitar o gozo da posse e qual trunfo empunhava o troféu da sorte.
Foi assim que ao anunciar o presente do dia que disse que iria partilhar contigo me disseste que hoje não ía dar, mas não, que não abrisse o maboque sem ti.
E assim será. Também esperei pelo odor forte e a dureza do seio, ventre, concha, aquário, relicário nuns bem pesados treze mil e quatrocentos e dezassete dias, alguns trinta e sete cacimbos bem medidos. Memória dum tempo, símbolo, signo, barca, ventre,casa, mote, marca, pele, terra e alma,
ali naquele mágico, duro redondo, depositei.
E tu, assim sem querer, devolveste-me a marca do tempo, elo, liana, eterna aliança que caminhou comigo o dia inteiro e respira agora pela casa, depois de, de mão em mão, eu ter passado o testemunho da memória desconhecida, engolida agora pelos olhos dos mais pequenos que palpavam e cheiravam o estranho mistério.
Devolvi-vos a vida de memória quando a passei aos presentes. Assim penso.
E só falei dos maboques, mas também vinham tambarinos no casulo e castanhas de cajú sequinhas com casca  e por isso assim no momento registei ainda sob efeito da flecha da emoção que age comigo qual cupido:


Soltou-se o brilho das estrelas do olhar
Agarrado ao cheiro que te saía das mãos
Trouxeste-me  a terra em forma de fruto
Saudade amarrada à distância dum tempo
Que trago no peito em forma de concha
amaciado num cuidado de doces lembranças

Aqui me encontro deleitada
Quase em estado de contemplação
Sustenho-me no tempo e me conforto
Entre o odor forte e adocicado feito peito redondo e duro
E a maciez do interior, ventre d’alma generosa
Espessas  águas, caldo morno,
Vísceras de agridoce sabor que me agarra ao rubro quente
Do meu fado, vida, espaço, colo, útero de mim feito

Vinha abraçado aos irmãos um já despido do corpo
Que exaltava o característico dum mais comum feito diferente
E outro ainda dentro do casulo, a adivinhar o festim doce acre
De rebentar os lábios num torpor dolente de adoçar o coração

Ambos relicários do tempo,  assim mos trouxeste
E estendeste-me a rede do tempo que me torna inteira





aqueceu a minha infância
acompanhei com os olhos os mais novos e por vezes, sem resistir,
lá me apanho de novo no meio a dançar com eles e a insistir no refinamento dos toques e do remexer
assim é com a passagem do testemunho
os filhos, os sobrinhos os sobrinhos netos
daqui a nada o neto também vai acompanhar

É música de brincadeira de roda bem ritmada em massemba, em que acompanhanhavamos com gestos em jeito de dança.

Circulavamos primeiro em roda , quando era o chuta bola, chutávamos, e depois no "Kalinguindós" havia um menear de ancas acompanhado pelo enrolar das mãos (como enrola a o melão da europa), com a doce e alegre graciosidade de crianças. 
A da minha memória é assim:
 
"Salalé três três, 
Salalé três três, 
É mana Zinha, chuta,
é chuta a bola, chuta, 
É na baliza, Chuta, 
Do S. Domingo, Chuta, 
Fazer barraca, Chuta, 
Kalinnguindós, Kalinguidós, Kalinguidós, 
Chuta!!!!!!!!!!!! (este último com a respectiva umbigada de rebita). 
Este é o meu salalé
 
se assim se mantiver não vamos esquecer o salalé
Doces memórias
Muitas memórias... lembro-me que aprendi os meus primeiros passos do tango com o pai, muitas vezes na companhia dos Barbudos. Este fez furor nos salões. Passam imagens dos mais velhos, a riscar o salão com os nossos olhos a seguir a marcação com os olhos pregados nos exímios acrobatas em que se transformavam os pés dos nossos cotas. Dos nossos guardo a mais antiga memória na casa da prima Alice, onde eu queria à força dançar com os dois até que me puseram no meio a marcar com eles o compasso. Do espectáculo o nosso querido tio Hélder com a tia Totoia, que também já no Lido ou no Cibra somava pontos e dava-nos os truques que hoje nos dão o jeito de agarrar qualquer revienga.Tenho saudades...


Encontrei nesta caminhada este pedaço de história que vos posso contar através deste testemunho. É mais um lamiré nesta passagem de testemunho para irem à procura de tudo o que possam encontrar, para irem ao encontro de vós próprios. Esgravatem mesmo e completem o o mapa da vossa identidade. Aqui vai este pedaço...

beginners

Compartilhamos este retrato no pequeno ecrã, encolhidos no sofá a saborear o tempo. Contava de uma forma bela das coisas de que gostamos de falar tantas vezes nesta viagem. Assim mesmo tal qual é, não romanceado não exagerado, com avanços e recuos como marés, com o lado negro, e face oculta, ternura encanto e sobretudo a coragem de viver. Foi um belo presente que o filho me deu num serão destes. Um belo retrato do amor, perda, família, amizade, Vida. A beleza da Vida.
A mãe não chorou? Até então estava contida, mas foi aí que desabei. Eu cá chorei, foi depois da perda da avó… e continuamos a misturar retratos colados com os que acabamos de ver. E dedilhamos as contas de momentos nossos, assim mesmo, nestes momentos saborosos de partilha.

no domingo

No domingo como prometido cumprimos mais um encontro.
Prometemos sim.
Íamos desconseguir e destravar todos os não pode ser, porquê e tal, e estivemos juntos sem apesares.
Depois da mãe partir, em casa de um em cada mês, promessa feita e não desfeita.
Paredes esticadas, mesa farta com a receita do mestre frei, o da sopa da pedra, conforme reza a história.
Fizemos tal e qual. E assim não houve pretexto para faltas. E teve funge de peixe e tudo mais. O tudo mais, foi o cada qual de cada um.
A receita era: cada um traz como se fosse para si. Quando ficou tudo junto, parecia mais era quase boda. Resultou mesmo e com muita conversa, desvios de macas que a mãe não ia gostar.
O pesar que se atravessava a cada esquina pela perda recente era desviado, num querer adiar, apenasmente desconseguido em cada cabeça.
O mais novo do terreiro apareceu ainda sem compreender que esta herança também lhe vai pertencer, no peso da tradição.
Saudei-o e matei saudades de todo o tempo que lhe devia. É lindo, o nosso caçulinha da família. Bem-disposto e comilão, a dar sempre sinal a cada quase três horas como um relógio, para se colar ao peito da mana a transbordar de felicidade nesta fase de plenitude de recém maternidade.
Os primos trocaram novidades atrasadas e futuras e os cotas comentaram cenas passadas, e gozaram com vaidades descondidas dos futuros da juventude.
As ausências foram compensadas com as boas lembranças e os que que não puderam comparecer foram falados pelos sucessos e caminhos novos que os levaram por estes tempos para outros lugares.
Assim estivemos todos juntos conforme prometido.
Estamos juntos!

eu vou com as aves

Ontem falávamos de coisas nossas e tu com algum pesar, da minha preocupação por ti.
Eu dizia da tua impulsividade... que só não queria que te magoasses...
E tu tentavas da melhor maneira dizer-me qualquer coisa como o que disse o Eugénio de Andrade. assim o senti e hoje o mano fez questão de me lembrar pelas suas palavras...

Aqui vai da tua voz que eu ouvi nas palavras de Eugénio de Andrade


Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

o cafezal

Ainda dormente do peso de dor mansa de ti mãe
Recebi o recado em forma de verde com pinceladas de rubro
Um manto doce em que se adivinha o quente negro de terreiro
a inalar um forte odor de doces memórias.
Assim nasceu o espaço.
Trouxe-me o filho embrulhado em registo quase sacro reflectido no brilho dos olhos quando se me acercou para perguntar:
- Mãe já foi ao cafezal?
Caminhei em direcção ao espaço com a pressa da medida da sua ansiedade
e assim o encontrei já verde e com pinceladas de rubro, pois já tinhas semeado
memórias de fruto.
Dei por mim a preenche-lo no campo, no terreiro, torrefacção, moagem, até ao quente das mãos da caneca bem segura a fazer transpirar o ar, ébrio de cheiro.
Muitos nossos farão parte.
Assim cresça e não se perca o espaço e a memória.